Exótica, singular, pitoresca e surreal são alguns dos adjetivos que há quase um século têm sido associados à Vila Itororó – uma construção enigmática que emergiu nas encostas de um dos muitos vales intocados na São Paulo em constante crescimento durante o início do século XX. A singularidade dessa obra, seu construtor e sua subsequente transformação em um polo cultural têm sido objeto de discussões, explicações, análises e justificações quase que exclusivamente devido à sua notável excepcionalidade.
Como se concretiza tal empreendimento concebido por uma única figura em um período crucial de modernização na São Paulo do início do século XX? Essa indagação nos conduz a explorar a jornada de construção da Vila a partir da trajetória de Francisco de Castro.
Nascido em Guaratinguetá, Francisco de Castro, o mentor e construtor da futura Vila Itororó, é frequentemente mencionado como “o português”. De fato, Francisco era filho de Francisco José de Castro e Julia de Oliveira Costa Castro, imigrantes portugueses que provavelmente chegaram ao Brasil em meados do século XIX e estabeleceram-se na porção paulista do Vale do Paraíba. Durante a década de 1880, a família retorna a Portugal, levando consigo os quatro filhos – Francisco, Frederico, Anésia e Eduardo. Francisco retorna ao Brasil em 1892, aos 15 anos. Sua viagem ocorre dentro do contexto de transformações profundas nos processos migratórios, o que Eric Hobsbawm denominou de “homens a caminho”. As idas e vindas da família Castro entre Portugal e o Brasil destacam um elemento intrínseco à condição do imigrante na era das migrações em massa: a possibilidade de retornar à terra natal ou de se deslocar para outro destino. Essa mobilidade confere ao imigrante uma espécie de eternidade no papel de forasteiro. Não se trata do estrangeiro passageiro, que chega hoje e parte amanhã, mas do estrangeiro que deixa sua marca e define o ambiente urbano, como expresso nas palavras do sociólogo alemão Georg Simmel em 1908, quando descreve aquele que “chega hoje e pode permanecer amanhã – pois possuía a capacidade de se movimentar e, embora continue seguindo adiante, ainda não abandonou completamente o movimento de ir e vir”. É por meio dessa perspectiva do estrangeiro como um ser inerentemente móvel que os movimentos da família Castro adquirem significado. Nessa mesma perspectiva, a naturalidade brasileira e a identidade portuguesa de Francisco de Castro se entrelaçam.
A chegada de Francisco de Castro a São Paulo coincide com um período em que a riqueza proveniente da expansão cafeeira estabelece os alicerces de uma economia urbano-industrial. Na cidade, encontram-se uma diversidade de atividades industriais, comerciais e financeiras, com a presença de instituições bancárias nacionais e estrangeiras, fábricas de notável porte, ateliês artesanais e escritórios de profissionais liberais, que convergem para solidificar São Paulo como um centro de negócios proeminente. O investimento em terrenos urbanos, juntamente com a subsequente subdivisão de chácaras, já é uma prática estabelecida para contrabalançar as flutuações nos preços do café.
A população, que desde a inauguração da São Paulo Railway em 1867 estava em rápido crescimento, experimentou um notável salto na última década do século, passando de menos de 65 mil habitantes em 1890 para quase 240 mil em 1900. Diversos bairros, como aqueles ocupados por trabalhadores e imigrantes com seus modestos empreendimentos caseiros, cortiços, bem como áreas europeizadas para a elite circundadas por setores médios igualmente crescentes, delinearam na paisagem urbana a estratificação social, tensões, cosmopolitismo e conservadorismo de São Paulo na transição do século XIX para o XX.
Durante os primeiros dez anos de residência de Castro na cidade, testemunhou transformações impressionantes, incluindo a substituição das lanternas de gás por iluminação elétrica nas ruas, a substituição dos bondes de tração animal por bondes elétricos e a transição do vapor para a eletricidade, impulsionando um real crescimento nas atividades fabris. Paralelamente, medidas de saneamento, a expansão de avenidas, a construção e reforma de viadutos, a arborização de ruas e praças, bem como a inauguração do Teatro Municipal, foram melhorias trazidas à cidade por Antônio da Silva Prado, um influente fazendeiro de café, banqueiro e empresário urbano que ocupou o cargo de prefeito, criado em 1899.
A trajetória de Castro em São Paulo se encaixa nesse contexto de fortalecimento da cidade como epicentro da economia nacional e modernização da vida urbana. O trio composto por café, indústria e atividades imobiliárias – fundamentais mas não únicas no processo de transformação da cidade – guiou as opções disponíveis para esse jovem descendente de portugueses, indicando as possibilidades e os percursos para a ascensão social que buscava.
Seu primeiro emprego ocorreu como caixeiro viajante na Casa Poyares & Cia, uma notável atacadista de tecidos e miudezas da época, de propriedade dos antigos Viscondes de Poyares. Dois anos depois, Castro ingressou na Companhia Lupton, uma empresa de exportação de café que intermediava entre fazendeiros e compradores, atividade especialmente lucrativa naquele período. Em 1897, ele mudou novamente de empregador, sempre em busca de oportunidades e renda melhores. Agora trabalhava para a Franz Muller & Cia como representante da indústria têxtil sediada em Americana. Essa atividade, possivelmente ligada ao capital industrial, pode ter proporcionado os recursos para investir em imóveis, em paralelo ao seu papel como representante comercial. Nesse trajeto ascendente, ele não apenas se tornou um representante comercial de uma proeminente tecelagem, como também começou a adquirir terrenos na cidade de São Paulo para construir casas destinadas à venda e locação.
Enquanto São Paulo estava em constante reconstrução e desenvolvimento, a produção de habitações se mostrava como um investimento seguro para aqueles que conseguiam juntar recursos. Fileiras de casas geminadas de um andar ou sobrados começaram a preencher os bairros centrais e operários, acompanhando as linhas ferroviárias e as várzeas dos rios Tietê e Tamanduateí. Novas áreas, bairros emergentes e construções emergiam “da noite para o dia, como uma cidade de encanto, construída por ciclopes e realizada pelo milagre de um sonho”, como poeticamente descrito pelo modernista Menotti del Picchia, em um dos seus artigos semanais no Correio Paulistano.
Entre 1900 e 1920, o número de edifícios quase triplicou, aumentando de 21.656 para 60 mil, enquanto a população cresceu de cerca de 240 mil habitantes para quase 600 mil. Isso impulsionou o setor da construção civil, levando ao aumento da produção de materiais de construção. Embora as grandes olarias já estivessem se estabelecendo na capital desde o final do século XIX, a maioria das construções particulares ainda era suprida pela produção artesanal de modestas olarias durante a primeira metade da década de 1900.
O aproveitamento de materiais provenientes de demolições, especialmente de edifícios da região central – muitos dos quais eram construídos com materiais importados – era fundamental para atender à demanda de ocupação dos loteamentos que se multiplicavam.
A aquisição de terrenos com o objetivo de construir prédios para venda ou aluguel parece ter sido a maneira pela qual Francisco de Castro se envolveu nas atividades imobiliárias de São Paulo. A partir de 1907, ele começou a solicitar licenças para construções junto à Diretoria de Obras e Viação da Prefeitura de São Paulo. A partir de 1911, sua atividade imobiliária intensificou-se e passou a incluir a construção da Vila Itororó, como é conhecida atualmente. Até pelo menos 1929, três anos antes de sua morte, inúmeros pedidos relacionados à Vila tramitaram pela burocracia municipal.
Na época da aquisição dos terrenos por Castro, já havia estabelecido uma conexão entre o centro da cidade e a Avenida Paulista, tanto pela Rua Santo Amaro – que em 1906 passou a ser conhecida como Avenida Brigadeiro Luís Antônio nesse trecho – quanto pela Rua da Liberdade, que seguia o traçado da antiga estrada do Vergueiro e se encontrava com o espigão na altura do Paraíso. Ambos os eixos viários eram oriundos das antigas estradas que ocupavam as terras mais altas: a Rua Santo Amaro acompanhava o divisor de águas entre os ribeirões Saracura e Itororó, enquanto a estrada do Vergueiro seguia o divisor de águas entre os rios Tamanduateí e Anhangabaú. O Vale do Itororó encontrava-se entre esses dois eixos. A transposição do vale ocorria por meio de aterros em dois pontos: pela Rua Pedroso e pela Rua Humaitá, que conectavam a Rua da Liberdade à Avenida Brigadeiro Luís
Antônio, abrangendo a área onde está localizado o terreno da Vila.
Uma das bordas do terreno da Vila fazia fronteira com a então Rua Itororó, junto à encosta do vale. A ocupação das áreas alagadas pelas correntes d’água que atravessavam a área urbana era evitada devido aos custos e empreendimentos necessários para saneá-las. Durante a década de 1920, quando a ocupação das áreas de fundo de vale com avenidas começou a ser aceita como parte do planejamento urbano, a prefeitura iniciou estudos e projetos para construir uma via no vale do Itororó, inicialmente chamada Avenida Itororó, como consta no mapa da cidade de 1929. Mais tarde, ela foi incorporada ao plano de Avenida de Prestes Maia, publicado em 1930. A partir de 1954, ela foi renomeada como Avenida 23 de Maio, mas sua construção só foi finalizada no final da década de 1960.
Nesse local estrategicamente situado, embora sujeito a intervenções da Prefeitura, Francisco de Castro adquire terrenos, áreas de fundo de quarteirão e pequenos espaços remanescentes de propriedades, configurando uma parcela irregular com frente para as vias Martiniano de Carvalho e Itororó, com acesso pela travessa Arthur Prado (hoje conhecida como Rua Monsenhor Passalaqua). É nesse espaço que Castro dará vida à empreitada que, segundo palavras de um amigo, “deixará uma marca duradoura no futuro como testemunho de sua enriquecedora passagem pela terra que o viu nascer”.
Enquanto nos lotes onde ele constrói edificações destinadas à venda, Francisco de Castro é mencionado nos documentos enviados à prefeitura meramente como proprietário, no projeto da Vila, ele assume a dupla função de proprietário e construtor – assumindo, assim, o papel de criador do conceito de sua própria residência.
A partir de 1907, ele começou a submeter pedidos de licenças para atividades de alinhamento, construção de muros, barracões, residências e prédios em suas propriedades.
Francisco Martins Pompêo emergiu como uma figura proeminente no cenário da construção no início do século XX em São Paulo, embora carecesse de diploma. Estes construtores sem título compartilhavam o mercado de construção com arquitetos e engenheiros, trazendo influências artísticas e arquitetônicas da Europa para atender às demandas da elite local. Nesta São Paulo em mutação, obras monumentais públicas e residências suntuosas erigidas por profissionais diplomados, como Ramos de Azevedo, Carlos Eckman ou Victor Dubugras, coexistiam com uma miríade de construções concebidas por brasileiros e estrangeiros de várias nações que compunham o cenário paulistano.
A parceria de Castro com Pompêo, um construtor já consolidado, proporcionou a Francisco de Castro uma entrada mais sistemática no mercado imobiliário e uma imersão em um leque diversificado de estilos, que, em última instância, definiu os bairros de São Paulo que circundavam o centro e não eram destinados à classe trabalhadora.
A Vila, assim como grande parte das construções nesses bairros, emergiu em uma São Paulo onde cerca de 80% das moradias eram alugadas. Conjuntos de casas, vilas construídas por empresários para seus operários, propriedades privadas, quartos individuais ou simplesmente o aluguel de um cômodo ou espaço dentro de uma casa eram algumas das várias estratégias que moldavam as relações entre proprietários e inquilinos.
Situado entre as fileiras dos diplomados e dos licenciados práticos, no papel duplo de proprietário e construtor, Francisco de Castro mescla em seu projeto para a Vila sua habilidade criativa e visionária com o desejo de garantir uma fonte de renda por meio do aluguel de residências. Essa combinação engenhosa de elementos, em que o funcional e o excepcional não se excluem mutuamente, permitiu-lhe desfrutar de uma vida social rica e estabelecer relações com a elite paulistana, intelectuais, artistas e membros da alta sociedade que passaram a frequentar o complexo.
Na concepção da Vila, Castro se distancia das abordagens adotadas pelas famílias vinculadas à indústria do café, aos negócios financeiros e imobiliários, e pelos imigrantes prósperos. Estes grupos, desde as últimas décadas do século XIX, tendiam a isolar-se em bairros onde exclusivamente erguiam suas mansões. Em seu próprio terreno, Castro construiu um grandioso palacete como sua moradia, adornado por imponentes colunas e cercado por um extenso terraço. Delimitando a residência principal, vastas áreas ajardinadas exploraram os terraços da íngreme topografia, onde fontes e esculturas eram habilmente dispostas.
Na porção mais baixa do terreno, ele ergue um complexo de entretenimento, onde uma piscina se destaca. Acompanhando essa imponente estrutura, alinham-se pelas terras filas de residências com dois pisos, cujo aluguel seria a fonte de uma renda mensal.
Entre os anos de 1913 e 1915, uma sequência de solicitações é enviada por Castro para a construção de casas, edifícios e sobrados em ambos os lados da travessa Arthur Prado, na extremidade da Vila, em parceria com Francisco Pompêo. Tudo indica que, em uma primeira fase, a subdivisão da vasta área adquirida ocorre de forma simultânea às solicitações de licenças e permissões de construção, tanto para a sua Vila quanto para os sobrados e edifícios destinados à venda na mesma quadra. Em outras palavras, Castro está imerso no embrião do seu futuro palacete, operando no canteiro de obras onde durante mais de duas décadas deu forma, reformou, planejou e refez cada detalhe do seu ambicioso projeto.
Em 1916, Francisco de Castro registra:
“O TRABALHO É O FECUNDO PROPULSOR DE TUDO QUANDO É ÚTIL, DE TUDO QUE É BELO (…) É A ORIGEM DA CORAGEM QUE ELE DIARIAMENTE RENOVA”
Nesse mesmo ano, pela primeira vez emerge uma planta da área destinada à Vila, devidamente delimitada, juntamente com sua configuração original. A partir desse momento, o foco de Castro se volta para as edificações que constituem o conjunto.
Em 1916, ele obtém autorização para a construção de um “pavilhão de vidro destinado à exposição de automóveis, sobre uma oficina de reparos e pintura”, voltado para a rua Martiniano de Carvalho. Nessa garagem, seu automóvel Pintacuda é exibido como numa vitrine, ostentando o status que um carro representava naquele período. Coincidentemente, no mesmo ano, Castro adquire sua carteira de motorista, onde consta o endereço de Martiniano de Carvalho, 27.
O palacete, que em 1922 seu amigo Muniz descreveria como “a residência singular e pitoresca que emerge do interior do desfiladeiro”, é gradualmente concebido em fases sucessivas. A partir da construção inicial, segue-se a instalação das bases das colunas; posteriormente, as próprias colunas são erguidas, seguidas pela construção de mais dois pavimentos.
Já no instante de sua inauguração, em 1922, os elementos ornamentais, bem como alguns dos elementos construtivos da Vila, são provenientes de estruturas demolidas.
Esses adornos são habilmente dispostos também nos vastos espaços ajardinados do complexo. Máscaras de proa e outros elementos provenientes do Teatro São José, aberto em 1909 no Viaduto do Chá, são incorporados somente após o ano de 1924. Os elementos decorativos do Teatro São José se entrelaçam com outros de origem não rastreável. Vasilhas, estátuas e figurinhas de ferro fundido, leões e águias, bancos e cadeiras, placas de bronze com inscrições poéticas constituem apenas alguns exemplos dentre uma miríade de detalhes decorativos adicionados às áreas internas, aos limites do terreno e às próprias edificações, conferindo uma identidade inconfundível à Vila na paisagem urbana.
Entre os jardins, emerge uma fonte situada no terreno, pela qual Castro celebra o centenário da Independência, alçando-a ao status de “Monumento Comemorativo da Fonte de 1822”. Além disso, um busto presta homenagem ao fundador da indústria têxtil à qual Castro mantém vínculos – o Comendador Franz Muller, que faleceu em 1920.
No dia 5 de maio de 1929, o jornal Folha da Manhã relatou o evento de “um churrasco para celebrar o primeiro teste da piscina de natação”. O acontecimento ocorreu no recém-estabelecido Instituto Helio Hydrotherápico Itororó, fundado por Francisco de Castro. O artigo do jornal enfatizava a presença de “distintas famílias de nossa elite social e representantes da imprensa” que participaram do “churrasco servido impecavelmente”.
Isso representava mais uma tentativa de Castro de implementar sua visão, dessa vez na parte do terreno voltada para o vale. Seus esforços já haviam começado no ano anterior, quando uma garagem na entrada da rua Maestro Cardim recebeu aprovação e, no processo, indicava-se que quatro residências seriam demolidas para dar lugar a um “salão de entretenimento”.
Castro embasava sua iniciativa na possibilidade da futura avenida, que já era mencionada no artigo do jornal como ponto de referência para a localização do Instituto.
Além da piscina voltada para o aprendizado de natação, o instituto também abrigaria banhos a vapor, banhos sulfurosos e aromatizados, utilizando as águas com propriedades terapêuticas, sujeitas a análises pelo Laboratório de Análises Químicas do Estado. Além disso, estavam previstos dispositivos de ginástica e esgrima, um salão de dança e jardins para as crianças. De acordo com o jornal, as obras seriam “imediatamente iniciadas” e o instituto estaria “totalmente operacional em poucos meses”.
No requerimento de “autorização para alterar o salão de entretenimento e a piscina” que enviou, três meses após o teste de natação, Castro conferiu àquele estabelecimento o nome de “Parque Itororó na Rua Maestro Cardim”. Além disso, ele solicitou a permissão para corrigir o alinhamento da entrada da Rua Maestro Cardim, “sem impor custos à prefeitura”, a fim de criar “uma fachada condizente com o Parque Itororó”.
Cerca de três anos depois, Francisco de Castro faleceu aos 55 anos em 5 de dezembro de 1932. A Vila foi posta à venda em leilão no ano de 1933. Por determinação do juiz, que considerou que os ativos penhorados formavam “um conjunto de difícil, senão impossível divisão”, e que dividir esses bens em parcelas depreciaria a totalidade, “devido à dificuldade e possivelmente à impossibilidade de encontrar comprador para quase todas as partes”, eles foram avaliados como uma única unidade pelo valor de 420 mil réis.
Muitas das construções foram penhoradas. Castro havia ultrapassado as construções para oferecer à Vila como garantia ao credor. Cada ornamento, peça de madeira, ferro fundido e pedra, assim como as estátuas e estatuetas de gesso, vasos, “leões”, “águias” em mármore ou barro, em um número considerável, foram minuciosamente inventariados. Essa era a composição do conjunto que estava ameaçado caso o proprietário não liquidasse sua dívida, e a dificuldade “em separar”, destacada pelo juiz, acabou por preservá-lo.
A transição da Propriedade e o Papel Habitacional da Vila Itororó
Em menos de um ano após o falecimento de Francisco de Castro, o conjunto da Vila Itororó passou para as mãos de Augusto Oliveira Camargo. Este novo proprietário não apenas perpetuou o negócio de habitação para aluguel, abrangendo tanto os sobrados e casas quanto o Palacete, mas também expandiu sua atuação, subdividindo o Palacete por andar. A partir de 1938, o espaço de lazer também começou a ser alugado.
Os rendimentos provenientes dessas locações eram destinados ao hospital que Camargo e sua esposa estavam construindo em Indaiatuba, interior de São Paulo, o qual foi inaugurado em 1933. Posteriormente, em 1945, Leonor Camargo transferiu a posse da Vila para a Santa Casa de Indaiatuba.
Apesar de possuírem objetivos distintos, Oliveira Camargo e sua esposa, tal como o fez Francisco de Castro anteriormente, se apoiaram na atividade segura e lucrativa de aluguel de moradias para sustentar um projeto pessoal que transcendia as fronteiras do mero interesse econômico. Ambos se beneficiaram de um período em que o direito absoluto do proprietário era uma constante, sem a interferência estatal no mercado de locação. Até a década de 1930, esse padrão de moradia predominou entre a população paulistana, incluindo a classe média, visto que opções de financiamento para aquisição de residências próprias eram escassas.
Descendo a encosta da Martiniano de Carvalho para a Maestro Cardim, era possível observar uma espécie de estratificação social. Quanto mais próxima da parte superior e nobre do terreno, melhores eram as condições econômicas das famílias. Essa diferenciação também se refletia no acesso ao espaço de lazer. Arrendado ao Éden Liberdade Futebol Clube, uma organização esportiva local que permaneceu na Vila até a década de 1990, o uso desse espaço era restrito aos associados. As sessões de cinema e bailes realizados lá parecem ter sido sempre abertos a todos.
As famílias que habitaram a Vila durante os anos 1930 e subsequentes, pelo menos até o início dos anos 1970, espelharam as mudanças sociais, econômicas e culturais da capital. São Paulo, na década de 1920, foi descrita por Nicolau Sevcenko como “uma cidade que não pertencia nem aos negros, nem aos mestiços; nem aos estrangeiros e nem aos brasileiros; não era americana, europeia, nem nativa; não era industrial, apesar do crescimento de fábricas, nem um entreposto agrícola, apesar da importância crucial do café; não era tropical nem subtropical, não era moderna, mas já não era mais do passado”. Segundo o historiador, São Paulo era um enigma para seus habitantes, que tentavam compreendê-la enquanto lutavam para não serem engolidos por ela.
As iniciativas do Plano de Avenidas, lideradas por Prestes Maia, prefeito de 1938 a 1945, moldaram o perfil metropolitano da cidade. Dezenas de avenidas foram abertas ou alargadas, muitas construções foram demolidas para dar espaço a edifícios verticais modernos. O impacto dessas transformações, juntamente com o aumento dos preços dos terrenos e a mudança na abordagem dos empreendedores imobiliários, que focavam cada vez mais na produção de imóveis para venda, conduziu a uma crise habitacional.
Dentro dessa efervescência transformadora da cidade, a Vila Itororó mantém sua singularidade. A incerteza quanto à urbanização do Vale do Itororó permitiu que o conjunto continuasse a ser um local de residência por aluguel. Os bairros vizinhos ao centro ofereciam acesso a escolas, bibliotecas, cinemas, teatros, praças, parques e uma ampla gama de serviços e espaços públicos que constituíam a essência da modernidade metropolitana.
Desde o passamento de Francisco de Castro, a prática de subdividir os espaços construídos entrou em vigor. Inicialmente, foi promovida pelo novo proprietário, que realizou adaptações no Palacete a fim de abrigar múltiplas famílias. Essas modificações incluíram a remoção da escadaria interna que conectava os pavimentos, a criação de entradas independentes para cada andar e a reformulação da passarela de madeira, objetivando transformar cada andar em uma residência independente. Em algumas das edificações, a prática de “aluguel de quartos” para locatários individuais ou casais já estava presente desde o início.
Ao longo desses anos, a Vila Itororó manteve-se como um espaço emblemático que reflete as práticas de moradia por aluguel, nas quais a subdivisão dos ambientes e o aluguel de quartos são estratégias contínuas. Enquanto isso, a moradia preserva seu papel central. “A 23 de maio de 4.700 metros e 23 viadutos está pronta” – assim foi intitulada a matéria no jornal O Estado de São Paulo, no dia seguinte à inauguração oficial e definitiva da Avenida 23 de Maio pelo prefeito Faria Lima. Quase cinquenta anos após a inauguração original da Vila Itororó por Francisco de Castro, a urbanização completa de seu entorno finalmente se concluía.
Em 1929, o que teria sido uma oportunidade para recuperar o investimento em uma área com urbanização incompleta, resgatar imóveis hipotecados e concretizar o ambicioso projeto de uma “fachada condigna com o Parque Itororó” – conforme idealizado por Castro – desencadeou um processo tumultuado que colocou em risco a Vila como um lugar de moradia.
A partir dos anos 1970, uma nova realidade urbana começou a emergir. Nem os novos inquilinos vislumbravam a possibilidade de adquirir uma casa própria, nem os proprietários viam garantias de lucro no aluguel de seus imóveis. Em 1970, segundo o censo do IBGE, os domicílios próprios superaram em número os alugados na capital. São Paulo, no cerne da economia nacional, experimentou uma migração massiva de pessoas de todas as regiões do país, resultando em um crescimento populacional constante por mais de quatro décadas. A maioria dos novos habitantes se dispersou pelo território, buscando construir suas próprias casas nas áreas periféricas, muitas vezes em loteamentos irregulares ou clandestinos, onde o sonho da casa própria poderia ser realizado.
A Vila Itororó, localizada entre o centro e a Avenida Paulista, ganhou um novo significado durante os anos 1970. Enquanto os bairros circundantes ofereciam acesso a serviços e espaços públicos modernos, a Vila permaneceu como um símbolo de práticas de moradia por aluguel, embora fosse oficialmente inserida nos mapas como parte do bairro da Liberdade. A proximidade de bairros centrais e o advento da Avenida 23 de Maio e da estação São Joaquim do Metrô também deram à Vila uma nova perspectiva de valorização imobiliária.
No entanto, a década de 1970 marcou um período de incerteza para a Vila Itororó. Rumores sobre seu futuro circulavam, e a conclusão da Avenida 23 de Maio e mudanças na política de ocupação do solo da cidade introduziram novos interesses e atores no cenário. A valorização imobiliária trouxe perspectivas de ganhos aos proprietários, especialmente com a abertura da avenida e a estação de metrô. A lei de zoneamento de 1972 impôs restrições à ocupação da área até que um plano fosse definido. Nesse contexto, a Vila despertou interesse de profissionais envolvidos na preservação do patrimônio histórico e cultural da cidade.
Em 1974, arquitetos realizaram um levantamento das construções de valor arquitetônico ou histórico para a ação de preservação. No total, 94 imóveis foram listados, incluindo a quadra da Vila Itororó. Paralelamente, outros arquitetos desenvolveram um estudo para a recuperação urbana da Vila, com um amplo programa de atividades culturais para ocupar o espaço e devolvê-lo à população.
Uma segunda proposta, envolvendo o Sesc de São Paulo, também surgiu em 1978. No entanto, em ambas as propostas, a moradia não foi considerada como um valor histórico ou cultural, e o destino dos moradores não foi adequadamente contemplado. Assim, a Vila Itororó, que persistiu como um símbolo de moradia por aluguel ao longo das décadas, enfrentou um destino incerto diante das forças de transformação urbana.
Nos anos compreendidos entre 1975 e 1978, as principais publicações da cidade divergem em suas descrições da Vila Itororó, alternadamente a retratando como um “complexo habitacional coletivo, operado por meio de sublocação”, um “conjunto tradicional de moradias modestas e cortiços na Bela Vista” ou ainda, como um local que anteriormente era um “ponto de encontro da elite paulista [mas que] agora exibe características de um cortiço”. A função original de habitação, que tem sido a essência da Vila desde sua concepção por Castro, gradualmente se transforma ao longo dos anos 1970 em um ponto de tensão para a preservação da integridade da própria Vila.
No ano de 1981, um anúncio publicado nos jornais atrai a atenção de incorporadoras para um “vasto terreno com três fachadas” e uma área total de 4.965 metros quadrados. Essa iniciativa mobiliza a seção paulista do Instituto de Arquitetos do Brasil – IAB, que então apresenta um requerimento ao Condephaat solicitando o tombamento da Vila Itororó. Ancorada na proposta delineada em 1975, a petição se baseia na perspectiva de que o conjunto é uma “edificação singular e representativa da ocupação histórica e espontânea da cidade”, possuindo um caráter sui generis que a torna única em seu gênero.
Durante a primeira reunião do conselho dedicada à discussão da Vila Itororó, Aziz Ab’Saber, que naquele momento presidia o Condephaat, e Flavio Império, ambos reconhecidos no cenário intelectual, abordam de maneira eloquente as duas questões centrais que o projeto suscitava. Um dilema se apresentava claramente: como lidar com a presença dos moradores de baixa renda em um imóvel destinado a ser tombado, mas com outra destinação prevista? A visão sobre a concepção de cultura também era evidenciada. Ab’Saber enfatiza que “pequenos subconjuntos complexos merecem estudos complexos”, ressaltando que a Vila Itororó transcende sua aparência superficial de modestas habitações. Ele argumenta que a abordagem deve ser mais profunda, dada a singularidade desse local.
Aziz Ab’Saber compartilha a necessidade de ponderação na decisão de tombar o conjunto. Ele levanta a inquietude de como essa decisão poderia impactar os habitantes de baixa renda, muitos dos quais já vivem com poucos recursos. O aspecto humano prevalece em sua consideração: “o homem desta rua, o habitante da Vila Itororó”, afirmando a importância de proteger as ocupações e meios de vida normais daqueles que estão ali.
Por outro lado, Flavio Império, residente em uma das casas da Rua Monsenhor Passalaqua, cujos limites eram adjacentes ao terreno da Vila, enfatiza que embora o projeto seja significativo para demarcar um local a ser preservado e destinado ao público, a compreensão da vida local estava equivocada. Ele destaca que a região não mais abriga italianos, mas sim descendentes, e é ocupada principalmente por nordestinos e negros de classes sociais mais baixas, que buscam proximidade com o centro e meios de transporte acessíveis.
No ano de 1985, o historiador Ulpiano Bezerra de Menezes redige o parecer sobre o tombamento. Sua postura é inequívoca: ele considera os desafios socioeconômicos como aspectos primordiais. Bezerra de Menezes defende o tombamento apenas se estiver integrado a um projeto de revitalização urbana que evite o deslocamento forçado dos habitantes. Assim, seu parecer se inclina a desaconselhar o tombamento sem um contexto abrangente de preservação e melhoria da área.
No desfecho da década de 1980, uma série de eventos políticos e mudanças legislativas tiveram impacto significativo na perspectiva em relação à Vila Itororó. A ativação do Conpresp – Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio – e a promulgação da Constituição Federal de 1988, que redefiniu o panorama legal referente ao direito de propriedade, combinados com a retomada da eleição de prefeitos, ampliaram o espaço para as ideias expressas no parecer de Ulpiano Bezerra de Menezes e as visões de Aziz Ab’Saber e Flavio Império. Essa nova conjuntura política pós-ditadura militar tornou obsoleta a abordagem de considerar a Vila Itororó como um caso isolado e decidir seu destino sem levar em conta o bem-estar de seus residentes.
Nesse cenário, em 2002, o Conpresp determinou o tombamento da área da Bela Vista que engloba a quadra da Vila Itororó, considerando-a como parte integrante do ambiente urbano e levando em consideração uma perspectiva ampla do bairro. O tombamento levou em conta diversos elementos, como a configuração das ruas, características geológicas, edifícios de distintos períodos, diversidade de usos que caracterizam o local, aspectos culturais, afetivos, ambientais e turísticos. Enfatizou também a importância da manutenção e expansão da população residente na Vila para a preservação da identidade do bairro.
O tombamento pelo Condephaat ocorreu posteriormente, em 2005, após conflitos entre o proprietário e os moradores, bem como negociações entre o proprietário e as administrações municipal e estadual. Esse processo de tombamento recuperou os termos da solicitação feita pelo IAB em 1981. Ele realçou a singularidade, pitoresco e onirismo do conjunto arquitetônico, que resulta da combinação de elementos decorativos, em grande parte provenientes do Teatro São José. Destacou ainda a inovação de ter uma piscina em propriedade particular, a relevância na paisagem urbana e a original implantação da Vila, interligando três ruas e ocupando o miolo da quadra. Uma área envolvente foi estabelecida, alinhada com a proposta de recuperação urbana de 1975. No ano seguinte ao tombamento, a saída dos moradores foi definida por meio de um decreto estadual, que declarou a Vila Itororó como de interesse público para fins de desapropriação, uma medida essencial para a Secretaria de Cultura preservar e revitalizar o local.
O CONPRESP (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo), que na Resolução 22/2002 elenca uma série de imóveis tombados no bairro da Bela Vista, inclui a Vila Itororó no Nível de Preservação 3 (NP3), que preserva parcialmente o imóvel, garantindo a preservação de suas características externas e ambiência.
O CONDEPHAAT (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo) concluiu o tombamento da Vila Itororó em 2005. Segundo a Resolução 9, de 10/03/2005, todas as edificações da Vila Itororó estão enquadradas como Grau de Preservação 2 – GP-2, que protege suas volumetrias e seus aspectos exteriores.
A partir de 1994, os habitantes da Vila Itororó começaram a mobilizar-se e, ao longo de mais de uma década, empregaram uma variedade de estratégias. Realizaram pagamentos judiciais dos aluguéis, depositaram os valores devidos em contas de poupança, ocuparam as habitações que gradualmente ficavam vazias e estabeleceram a Associação de Amigos e Moradores da Vila Itororó (AMA Vila). Amparados pelo Estatuto das Cidades, aprovado em 2001, e com o apoio do Serviço de Assessoria Jurídica Universitária da Faculdade de Direito da USP (SAJU), entraram com ações de usucapião, buscando legitimar a posse dos imóveis que a instituição proprietária havia abandonado.
O decreto de utilidade pública em 2006 e a subsequente desapropriação do conjunto conduziram os moradores para a esfera da intervenção do poder público em relação às necessidades habitacionais de baixa renda. Eles recorreram à justiça para contestar a decisão que transferia a posse ao governo estadual e exploraram uma colaboração com as autoridades visando a um possível projeto de reabilitação.
A desocupação da Vila tornou-se inevitável e, durante o processo de negociação, os moradores conseguiram garantir que continuariam residindo na área central para permanecer nas proximidades.
Entre 2011 e 2013, em meio a conflitos intensos, que envolveram notificações e processos de despejo antes da finalização das habitações pelo CDHU destinadas aos antigos moradores, a Vila Itororó não foi poupada da violência policial frequente durante as reintegrações de posse. Eventualmente, as 71 famílias foram realocadas em três conjuntos habitacionais, sendo dois situados nas proximidades da Vila e um terceiro no Bom Retiro. Com a resolução por meio do aluguel dos apartamentos do CDHU, as lembranças das vivências na Vila Itororó serão constantemente reconfiguradas, sempre a partir das circunstâncias presentes. Como Maurice Halbwachs afirmou, “o passado não é conservado e nem ressurge de forma idêntica… Apenas a imagem do espaço, devido à sua estabilidade, nos ilude quanto à invariabilidade ao longo do tempo e à capacidade de resgatar o passado no presente: é assim que a memória pode ser definida”.
Em 2013 o Governo do Estado de São Paulo dá a cessão de uso do espaço para a Prefeitura de São Paulo, tendo início a restauração da Vila Itororó com a aprovação do projeto cultural na Lei Rouanet pelo Instituto Pedra. Em dezembro de 2019 a primeira etapa das obras são entregues, sendo realizada através de uma parceria entre a Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo e o Instituto Pedra.
Fonte: Instituto Pedra